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A necessidade de atingir resultados financeiros pressiona os média a darem atenção aos interesses do público. Em perigo fica o serviço público que fazer jornalismo implica.

Disfarçado de peruca e óculos, Cristiano Ronaldo foi, recentemente, fotografado a beijar a namorada durante um passeio na Disneyland, em Paris. As imagens correram mundo e foram publicadas tanto pelos média populares como pelos chamados de referência. Esta foi apenas mais uma notícia sobre a vida privada do jogador a somar a muitas outras − os altos e baixos da vida amorosa, a identidade da mãe do filho ou as alegadas fugas ao fisco. Terão estas informações interesse público ou constituem uma invasão da vida privada do jogador?

A resposta não é simples, garantem os especialistas ouvidos pela Lusófona, porque não é clara a fronteira entre o que se entende por “interesse público” e “interesse do público”. Mesmo quando o Estatuto e o Código Deontológico dos Jornalistas apontam, especificamente, que a exceção ao respeito pela privacidade de um cidadão só pode ocorrer quando é posto em causa o interesse público, este conceito nunca é claramente definido.

Não se trata propriamente de uma lacuna da lei, porque a definição depende da situação concreta. “Uma definição feliz é a que caracteriza interesse público como algo que habilita o cidadão a tomar decisões mais informadas”, esclarece o jornalista Paulo Martins, autor de uma tese de doutoramento, precisamente sobre o problema da cobertura jornalística de factos da vida privada. Referindo-se ao art.º 9 do Código Deontológico, o jornalista especifica: “quando o discurso público de um indivíduo – por exemplo, para caçar votos – é contraditório com a sua prática privada, é dever do jornalista denunciar tal conduta. Precisamente para que o cidadão decida em consciência”.

O direito às notícias relevantes

O advogado André Raposo, responsável pela defesa de jornalistas em alguns processos onde esta questão esteve em causa, nomeadamente, o caso do “Envelope 9”, corrobora esta opinião. Sublinha que a informação “tem de ser relevante” para adquirir interesse público mas, como esta afirmação não basta para traçar fronteiras, recorre a um exemplo hipotético, embora explícito: uma ministra que se manifesta contra o aborto e que se descobre depois que já o praticou, este aspeto da sua vida privada ganha relevância pública.

À relevância deve juntar-se o direito/dever de informar do jornalista, acrescenta Sara Pina, docente da disciplina de Responsabilidade Social dos Media, na Universidade Lusófona. Nesse sentido, interesse público refere-se a “todas as informações que os cidadãos têm o direito de conhecer, o direito a estarem informados sobre os assuntos que direta ou indiretamente afetam as suas vidas. O seu direito à verdade”. Verdade que só excecionalmente supera o direito à privacidade do protagonista de uma notícia. Mais uma vez, as exceções têm de ser ponderadas caso a caso, adverte a professora e ex-jornalista. Nota, contudo, “que as figuras públicas têm uma esfera da privacidade mais reduzida do que o comum dos cidadãos”.

Numa altura em que a vida privada de políticos, artistas ou desportistas é alvo de grande curiosidade, os média procuram corresponder aos interesses do público e, mesmo os órgãos de informação ditos de referência, acabam por ceder e dar espaço a histórias dos momentos mais íntimos das figuras com notoriedade. “Os interesses comerciais e financeiros têm levado os órgãos de comunicação a preocupar-se muito em tratar assuntos que vendam, esquecendo-se da sua função fulcral de existir: satisfazer a necessidade dos cidadãos de serem informados para conhecerem melhor as circunstâncias da sua vida e tomarem boas decisões”, explica Sara Pina. E embora “a missão dos jornalistas seja tornar as notícias importantes em interessantes”, a especialista em responsabilidade social dos media considera que essa tarefa não deve ser assegurada pelas notícias de mero interesse do público. “As notícias que não são importantes não interessam nem aos cidadãos, nem ao jornalista, não são de interesse público”.

Não significa, contudo, que o mero interesse do público seja necessariamente negativo e não possa ser noticiado. Fundamental é que os “interesses menores do público” não se sobreponham ao interesse público, adverte André Raposo. “Nem tudo o que é do interesse do público é mau”, sublinha, “mau é se afetar os interesses dos outros”.

Paulo Martins vai mais longe na análise ao considerar que “aos interesses do público não é alheia nenhuma fase da produção jornalística, desde a selecção noticiosa até à difusão, passando pelo tratamento”, dado que o que se trata aqui não é propriamente “condicionar o interesse público”, mas “tornar interessante o que é importante”.

E porque é com casos concretos que se esclarece esta problemática, o jornalista e investigador dá um exemplo: “se o jornalista concede mais destaque ao penteado de uma atriz de cinema do que à introdução do Governo de um novo imposto, porque supõe que interessa mais ao público, não cumpre a sua missão”. Mas “não defendo a exclusão da abordagem jornalística do penteado da atriz…”

Por outro lado, “a descrição de um crime com pormenores sórdidos, como a forma como foi cometido, não é de interesse público; apenas satisfaz curiosidades mórbidas, que nada têm a ver com a função do jornalista”. Mas apesar de toda a contaminação que o jornalismo tem vindo a sofrer de outras formas de comunicação, Paulo Martins acredita que é possível estabelecer uma fronteira entre interesse público e interesse do público.

Decidir caso a caso e em consciência

Então, quais os critérios que permitem ao jornalista determinar com rigor quando o interesse público pode e deve sobrepor-se à privacidade e intimidade de alguém? Os critérios não são rígidos nem devem ser, “sob pena de poderem resvalar para atos censórios”, responde Paulo Martins, sublinhando, mais uma vez, que o princípio é sempre o do respeito da privacidade do cidadão. Sacrificar este direito, em nome do interesse público, é uma decisão que “não pode ser tomada de ânimo leve”, afirma.

“O jornalista deve agir sempre de acordo com a sua consciência, mas perante situações desta natureza é recomendável que a apreciação seja colectiva – envolva a hierarquia, outros jornalistas, eventualmente o Conselho de Redação”. Partilhando da mesma opinião, o advogado André Raposo sugere até que nas situações de dúvida os jornalistas devem aconselhar-se com advogados, de modo a prevenir violações da lei.

Em tempo de crise, os média procuram estratégias que captem audiências e com elas um volume de publicidade que lhes assegure a subsistência. Mas nem sempre os meios para o conseguir são eticamente os mais adequados. Sacrificar o interesse público em nome do interesse do público é um deles. Paulo Martins acredita que o caminho pode ser outro. Para um meio de comunicação social preservar a sua credibilidade, tem de “demonstrar ao público que está vinculado a normas ético-deontológicas que outros produtores de informação não têm de respeitar, expondo-se abertamente a escrutínio, porque essas regras são públicas”.

À luz das palavras dos entrevistados, a vida amorosa de Cristiano Ronaldo ou a identidade da mãe do filho não oferece grandes dúvidas, pertence à sua vida privada. Já a informação sobre as fugas ao fisco requer atenção: a possibilidade de o jogador ter lesado o erário público em 150 milhões de euros é, certamente, uma notícia de interesse público.